Jubileu de Ouro[1]
Xiko Mendes
Academia Planaltinense de Letras, Artes e
Ciências-APLAC
Passaram-se
cinquenta anos daquele episódio triste que marcou toda a minha vida. Naquela
época eu tinha uns vinte anos. Era balconista. Trabalhava no botequim da
esquina mais movimentada de minha cidade em frente ao único posto de gasolina
daquele pobre vilarejo perdido no sertão de Minas, uma corrutela com menos de
três carros automotivos. Foi aí que uma cena povoou minhas retinas para sempre.
Num certo dia, uma quarta-feira de cinzas,
antevéspera do sábado de aleluia, bem defronte a uma mangueira gigante que
ficava em frente àquele botiquim, uma criança ajoelhou-se com braços cruzados
diante de uns quinze jovens que tinham a minha idade e que ali estavam montando
o boneco do judas para a malhação que ocorreria no sábado seguinte. Essa era a
única diversão daquela meninada naqueles dias.
Essa criança ali
ficou ajoelhada a manhã inteira. Não se sabia se contemplava a beleza do boneco
ou se meditava sobre a malhação do judas. Nada dizia. Seu silêncio angelical me
incomodava. Decidi então inquiri-la. Quis saber dela o motivo. Pensei com meus
cotovelos: a mãe deve ter a orientado para se sacrificar ou crucificar-se
naquela semana santa. Quase nada me disse; apenas seu nome. José Maria. A noite
chegou e ali ela permaneceu. Voltei no meio da noite; e outra vez eu fiz as
mesmas perguntas. Sem resposta. Dormi inquieto. Antes que a aurora desse adeus
àquela criança, decidi voltar pela última vez. No raiar do amanhecer, ali não
encontrei nem a criança nem o boneco do judas nem a mangueira frondosa e tão
viva. A árvore ficou tão emudecida quanto aquele menino – pensei comigo – murchou-se no meio da noite e amanheceu
morta.
Será que aquela
criança morrera? Não. Uma semana depois da Malhação de Judas nas ruas da minha
cidade, encontrei a mesma criança em cima da jumenta do meu pai. Era com essa
jumenta que em todos os anos a meninada morria de rir colocando o judas em cima
dela e malhando-o como se estivessem crucificando todas as pessoas maldosas do
mundo. Ao final desse ritual triste, a jumenta era devolvida ao meu pai. O
resto do boneco era queimado como se fosse uma expiação.
Não me contive.
Dirige-me àquela criança casmurra, maltrapilha e cismada, que tinha
aproximadaemente uns nove anos, e disse-lhe:
– Desça dessa
jumenta e me diga por que dias antes não quisera falar comigo ao que ela
respondeu, prontamente:
– O mal não se paga
com o mal. E essa jumenta não deve nunca mais ser usada para malhar judas. Se
Judas traiu Jesus Cristo, vocês estão traindo a jumenta ao expô-la em praça
pública carregando aquele boneco ridículo que é espancado por todos. Essa
jumentinha andou com aquele boneco em cima dela, tão caladinha – como caladinho
fiquei, presenciando, triste, e imaginando o que ela estava sentindo. Quis
adivinhar o sentimento dela. E acho que ela queria que você a colocasse numa
carroça para fazer o aniversário de todas as crianças pobres dessa cidade.
Foi aí que
pensei em largar aquele empreguinho mixuruca. Despedi-me daquela criança e
achei que nunca mais iria vê-la. Como não tinha dinheiro (e trabalhava sem
carteira assinada), juntei o pouco que tinha e comprei uma carroça. Meu pai me
doou a dita jumenta. E assim nasceu naquela corrutela a primeira empresa de
eventos. Decidi que iria ficar rico organizando aniversários das crianças
pobres de minha terra.
Rico? Não fiquei.
Ninguém fica rico fazendo aniversários. Anos depois, fiz o aniversário do filho
do Zé Maria. Foi a festa mais linda da minha vida. Mas naquele mesmo dia minha
jumentinha morreu. Triste e feliz ao mesmo tempo, decidi abandonar a profissão.
Passaram-se mais alguns anos e reencontrei Zé Maria com aquele seu filhote,
agora rapagão, o último aniversariante da minha empresa informal. Quis inquirir
o Zé Maria sobre aquela cena que marcou minha vida há cinquenta anos.
– Por que você
ficou o dia e a noite toda de braços cruzados e pernas ajoelhadas entreolhando
a montagem de um boneco?
– Porque a vida,
amigo, é feita de silêncios cheios de palavras que se multiplicam no vácuo do
tempo e às vezes é necessário passar cinquenta anos para que a gente entenda
como a morte daquela mangueira e de sua jumenta são importantes para
compreender que tudo isso é a soma de uma matemática que não expressa em
números o meu silêncio de décadas atrás, mas traduzem apenas numa troca de
olhares todos os aniversários que você fez em toda a vida. Sua jumenta morreu
feliz porque deixou de carregar o judas malhado. E dali em diante transportou
presentes que fizeram alegres centenas de crianças por aí afora. A jumenta
permanece viva como imagem resplandescente na cabeça daqueles aniversariantes
felizes cuja festa você é quem fez.
Despedi-me do Zé
Maria pela última vez. E guardei para sempre nessas minhas surradas retinas de
idoso remoendo o passado quanto o tempo, senhor da razão, precisa de tempo para
traduzir em nossos corações o que a gente leva década para entender.
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